domingo, 27 de junho de 2010

LINDOLF BELL




Entrevista concedida à Fundação Catarinense de Cultura.




FCC – Lindolf Bell, estamos na casa em que nasceste, em Timbó, e nossa primeira indagação é sobre tua infância- teus primeiros anos, teus pais, o que ficou deles no poeta.

LB – Eu acho que há uma linha bem clara em todos os meus poemas. Minha poesia, embora urbana, no fundo conserva elementos da vida agrária. Meus pais foram lavradores e tinham um sentimento de mundo que ficou em mim para sempre. Por exemplo: quando meu pai tocava, nos finais de tarde, o seu bandoneón, e exercia nisso a sua solidão e o seu sentimento, como uma forma de estar em contato consigo mesmo, esta é uma imagem que ficou em mim, é um som que ficou em mim. Como ficaram em mim os poemas que minha mãe, filha de russos brancos, dizia nas festas de aniversário, nas noites de Natal, nos dias de Páscoa, nos casamentos. Eram poemas que ela aprendeu com os pais. E isso é uma imagem para mim também, a imagem de alguém que não era só a minha mãe, era também uma guerreira, uma guerreira lírica, uma doce guerreira que tinha a coragem de se levantar e dizer poemas.

FCC – 0 filho dela, mais tarde...
LB – Pois é, muitos anos depois passei a fazer isso na Catequese Poética. Os poemas ditos por minha mãe eram uma imagem sonora, eles me passaram esse profundo arraigamento, essa profunda necessidade de preservar uma idéia de oralidade dentro do poema. Mesmo quando, nos anos 60, toda a poesia brasileira estava se vestindo com grafismos e possibilidades visuais, a minha idéia básica do poema sempre permaneceu esta : por mais gráfico que o poema seja e ainda que ele seja totalmente gráfico e ainda que você só o leia com os olhos, o som no poema é essencial. Mesmo quando você o lê em silêncio, há nele um som que só você percebe na sua leitura silenciosa

.FCC – 0 bandoneón de teu pai, os poemas recitados por tua mãe... que outros exemplos podes dar daquilo que persistiu significativamente no poeta?
LB – Todas as coisas que me rodeiam são raízes. A jabuticabeira que deve ter quase cem anos, a caramboleira, os baús, os móveis e todos os objetos antigos não são uma forma triste de memória mas uma afirmação de que, num crescimento espiritual, num crescimento humano não podemos jogar nada pela janela ou no lixo.Não podemos jogar fora as raízes – elas nos preservam e elas se preservam conosco, na memória ou dentro da terra, seja onde for, mas elas também nos projetam porque, à medida que elas se preservam na terra, elas crescem e fazem a gente crescer, como uma árvore. O homem é uma árvore que abriga amores, lembranças, outros seres, uma árvore que dá sombra e luz, e é pra isso que a gente nasceu, fundamentalmente. Isso eu aprendi, é claro, convivendo com meus pais e também com os vizinhos, que tinham maneiras semelhantes de viver e conviver, maneiras simples mas definitivas.

FCC – E como é que se manifestou teu interesse pela palavra escrita ?
LB – Bem, até onde posso me situar no tempo, quem despertou em mim o interesse pela palavra foi minha mãe. Ela era, com toda a sua simplicidade, uma fanática por leitura. Como éramos pobres e não tínhamos livros, e a cidade também era pobre e não tinha bibliotecas, o que líamos aqui em casa era a Bíblia. Fui alfabetizado em alemão e o primeiro livro que li foi a Bíblia. Durante muito tempo li também os calendários de farmácia. E havia, como falei antes, o interesse oral pelos poemas que minha mãe dizia. Suspeitando que teria necessariamente de existir um instrumento onde esses e outros poemas deviam estar, os livros despertaram minha curiosidade muito cedo. Tanto que, aos seis anos, eu estava alfabetizado em alemão e lia a Bíblia. Não entendia muita coisa mas, de alguma forma, percebia todo o fascínio contido nesse livro. Depois vieram as primeiras leituras no Grupo Escolar Polidoro Santiago.


 FCC – Alguma lembrança especial da primeira escolinha ?

LB – Lembro de uma coisa fascinante que havia então nas escolas primárias aos sábados: dizíamos poemas em homenagem à Bandeira. Os alunos e os professores se reuniam e sempre tinha alguém que dizia algum poema. Eu sempre dizia, tinha uma certa facilidade para decorar.

FCC – Tiveste, como se vê, um encontro bastante precoce com a poesia.
LB – Mais adiante, houve uma iniciação mais ampla com o prof. Gelindo Sebastião Buzzi, no Colégio Rui Barbosa : fui lendo os clássicos gregos e latinos, todos os poetas brasileiros coloniais, do Romantismo, da Inconfidência Mineira – aquilo enfim, que era a base até os anos 50, a chamada Poesia Brasileira. Porque até lá, até esses anos, não havia um livro de escola publica que trouxesse poemas de Drummond ou Bandeira. Mesmo com a Semana de Arte Moderna, não se publicavam poemas, eram só referências. Havia as famosas cartilhas, os livros de Português, sempre com um material e uma linguagem que iam, mais ou menos, até os anos de 1920. Depois, quando fui para o Exército, no Rio...

FCC – Pois é, foste para o Rio. 0 que representou esse passo na tua vida ?
LB – Foi em 1959. 0 Rio de Janeiro era a capital brasileira em todos os sentidos e maravilhosa de verdade. 0 Exército foi o caminho para chegar até ela. Enquanto servia, fiz o vestibular para Ciências Sociais. Um mundo incrível se abriu para mim: contato com as bibliotecas, lançamentos de livros, concertos, cinema, teatro, tudo estava lá. Comecei enfim a descobrir nomes da literatura universal, de repente percebi que não eram só as poetas bíblicos, nem os poetas românticos brasileiros, nem os poetas revolucionários, como Castro Alves. Aliás, acho que esse foi um poeta fascinante, um poeta que foi à praça, um poeta com uma postura pública. Descobri Rilke, que se tornou meu fascínio maior, descobri Eliot, Fernando Pessoa, Drummond. Conheci pessoalmente Drummond, Bandeira, Cecília Meireles, Cassiano Ricardo.

FCC – 0 que não deve ter sido importante para o jovem aspirante à carreira literária conhecer essa gente !
LB – Claro, a convivência não muda nossa natureza, mas pode enriquecer, abrir nossa natureza. A natureza é um leque a ser permanentemente aberto, desde que a gente permita, desde que a gente esteja disponível. Para chegar a essas pessoas havia também no meu caminho um caminho subterrâneo, invisível, subjacente. Tinha que ser assim, foi assim, está sendo assim.

FCC – Tua estréia em livro ocorreu em l952, com Os Póstumos e as Profecias. Pode-se considerar esse livro como uma síntese do teu período de formação ?
LB – Era um livro que estava pronto fazia dois anos. Surgiu em São Paulo o movimento dos Novíssimos, sob as asas protetoras do editor Massao Ohno. Deu certo e o livro não é apenas a síntese de um período de minha formação. Creio que nele se encontra o núcleo permanente do meu fazer poético.

FCC – Em l964, sai Os Ciclos e tem início o movimento de que foste a figura mais destacada, a Catequese Poética. Qual a origem do movimento ?
LB – Situo essa origem na Juramento à Bandeira, no fim do meu tempo de Exército. Com a tropa inteira presente, falei um poema. Foi um arrepio que ainda permanece, um grito que ainda vibra no ar. Depois disso, vieram os espetáculos de poesia em São Paulo, no Teatro de Arena, no Oficina, na Galeria Metrópole e a leitura de poemas no Viaduto do Chá – isso deu impulso e abertura nacional ao momento.

FCC – Quais as adesões que o movimento recebeu?
LB – Luiz Carlos Mattos, Iracy Gentilli, Rubens Jardim, Erico Max Muller, Reni Cardoso, Ronald de Carvalho foram os poetas mais assíduos. Aquilo cresceu na base do grito, do peito, da dedicação absoluta, através de leituras e recitais pelas praças, boates, estádios, portas de fabricas, universidades, clubes e todos os espaços alternativos, como escadarias e galerias das cidades.

FCC – A poesia em voz alta, a lição de tua mãe dando frutos na cidade grande... Que consequências teve, a teu ver, essa experiência?
LB – Os efeitos naquele momento foram revolucionários. A imagem do poeta modificou-se, ele aparecia frente a frente a um público desacostumado com a leitura da poesia, sem falar no consumo do poema oral. Tudo o que veio depois traz uma série de conseqüências da Catequese Poética. Até 1964, não havia poesia fora do livro, nem feiras de arte, nem concertos em praça pública, nem teatro de rua, todas essas manifestações culturais que antes só aconteciam em lugares consagrados e de acesso limitado.

FCC – Olhando tua bibliografia, encontramos uma experiência na prosa, Curta Primavera. Como é que foi?
LB – Foi um desafio. Há nesse livro toda uma atmosfera poética. É uma novela, com o mesmo acontecimento olhado de vários pontos de vista. Continua um caminho aberto.

FCC - E o teatro ? Fizeste, em São Paulo, um curso de Dramaturgia. Que atividade exerceste neste campo ?
LB - Fora os espetáculos de poesia, nos quais eu fazia meu próprio papel, a Dramaturgia me tem acenado com uma possibilidade dramática que continua no fundo do baú. São textos que amadurecem sem pressa. Tudo tem seu tempo e o teatro me fascina enquanto texto a ser feito.


FCC – Voltemos à poesia. As Annamárias, de 1971, marca um momento notável da tua lírica. Drummond referiu-se a essa obra com entusiasmo. Como ela nasceu ?

LB – Anna Maria Kieffer foi uma pessoa importante na minha vida. Quando deixamos de viver juntos, surgiu o livro. É uma forma de celebrar e homenagear uma grande mulher e o ato amoroso, necessariamente, não-durável.

FCC – De que modo acontece normalmente o poema em Lindolf Bell ?
LB – Acontece de vários modos. Fazer poemas é ter a capacidade de mostrar as muitas faces da alma. Eu acredito profundamente que o sentimento do mundo pode ser um estado permanente e é por essa razão que estou fazendo poemas o tempo todo. Eles acontecem em qualquer espaço e em qualquer momento. Posso estar aqui no sítio, como estamos agora ou trabalhando numa exposição de arte, ou viajando de avião ou de automóvel. Penso que o que provoca a necessidade de fazer o poema é o repentino contato com um horizonte invisível da alma do mundo. Quando a alma do mundo e a alma ao criador encontram um momento de sintonia a necessidade de fazer o poema acontece.

FCC – Os objetos, as criaturas, os seres humanos intermediam essa "alma invisível do mundo". Haveria uma dominante entre esses mediadores?
LB – 0 que eu sei é o que eu sinto. Eu sinto que pra você também ser um mediador, porque fazemos parte da grande natureza geral, e temos em nós uma parte dessa alma invisível que justamente nos coloca em contato com a grande alma invisível das coisas todas do mundo é preciso ter disponibilidade. Se você não esta disponível, você começa a ser rejeitado pela alma geral das coisas.

FCC – A mediação não será uma afinidade ?
LB – Sim. A afinidade que justamente está próxima da disponibilidade. Porque a grande alma do mundo está sempre disponível para as coisas acontecerem. Nós nos fechamos demais para essa lembrança de que as coisas são vivas no invisível também. Elas só podem se tornar visíveis, não importa a forma de criação, se encontrarem um instrumento disponível. Esse instrumento disponível algumas vezes pode ser o poeta.

FCC –Bell, falaste da tua ação no período da Catequese. Pelo que se percebe, tens agora uma atitude um pouco diferente, estás restringindo a tua participação publica, te voltando mais para a produção, cuidando mais da distribuição do teu trabalho, não é verdade?
LB – Há um principio muito semelhante em todas as esferas da natureza. 0 coração do homem faz parte dessa natureza e o que ele dispõe para ser um instrumento de comunicação faz parte dessa natureza e o que dele é um instrumento de criação também faz parte dessa natureza. E a natureza tem muitos tempos e todos eles são fundamentais.

FCC – É, já diz a Bíblia que...
LB – ... que há um tempo de plantar e um tempo de colher. E não temos sempre a mesma plantação nem a mesma colheita. Podemos ter coisas similares mas não serão as mesmas. Há que perceber, em tempo, se você plantou o suficiente um tipo de horizonte, um tipo de praça, um tipo de terra, um tipo de campo. Durante mais de 30 anos andei pelas ruas deste país, pelas escadarias, viadutos, estádios, portas de fábricas, escolas, colégios, boates, clubes e casas particulares – andei, enfim, onde eu achava que podia de alguma maneira ser ouvido e fazer com que as pessoas aprendessem a ouvir poesia. Eu fazia isso com muita intensidade mas essa intensidade ,de repente, pode ser um perigo na medida em que você se torna apenas um comunicador daquilo que já fez. Aí está justamente aquilo de que falamos antes, a grande natureza invisível.

FCC – Diante da qual precisa haver disponibilidade.
LB – É isso, para ser um criador você tem que ter disponibilidade. Eu percebi que estava na hora de conversar com meus botões e com meus próprios deuses, de permitir que eles novamente se achegassem, de deixar que a minha alma ficasse disponível. Estou com 51 anos e tenho uma obra que, a meu ver, tem seu peso certo, sua medida certa. Acredito que seja uma medida e um peso duradouros mas, para eu merecer essa durabilidade, não posso parar. Por isso, tenho restringido essa tarefa de andar tanto por tantos lugares a dizer sempre as mesmas coisas. Acredito também que esse trabalho da Catequese Poética tem influenciado muitas pessoas neste país. Muitas pessoas, depois do que a gente desenvolveu, fizeram e estão fazendo esse trabalho de alguma maneira. 0 que se sabe é que ele não existia antes, mas está existindo depois. Então, penso que os que estão fazendo tal trabalho, além de cumprirem uma missão pessoal, estão continuando um trabalho, esta é que é a verdade mesmo, muitas vezes fingindo que não sabiam da existência anterior desse trabalho. Às vezes, não sabendo de fato, e, às vezes, tendo a dignidade de dizer que sabiam.

FCC – Fala mais dessa tua decisão de um maior isolamento para te abrires melhor para a interioridade, a concepção.
LB – Para a concepção e para o meu material de trabalho. Afinal de contas, não é só sentimento do mundo. Se eu quero dizer o meu sentimento de mundo, tenho que saber o material com que trabalho. E o meu trabalho é a palavra e a palavra é o princípio das coisas. "No princípio, o verbo boiou sobre as águas", isso é absolutamente verdadeiro. Eu não posso desprezar, colocar de lado o material com que trabalho, uma vez que ele é tão rico, tão inesgotável. Se eu digo hoje a palavra amor de uma maneira, vou dizê-la amanhã com um outro timbre, porque a palavra é infinitamente rica, tudo subjaz na palavra, mesmo aquilo que a gente não suspeita. Quando menos se suspeita, descobre-se uma outra possibilidade. A palavra jamais se gasta. As pessoas é que se gastam. Os poetas é que são pobres, na maioria das vezes .

FCC – 0 cansaço do verbo não é do verbo?
LB – Não, é das pessoas que o usam ou mal usam.

FCC – Bell, o teu primeiro livro é de l962 e o mais recente, 0 Código das Águas, é de 1984. Qual a tua trajetória entre um e outro? Que mudanças aconteceram no teu modo de pensar e de criar o poema nesse meio tempo ?
LB – Acho que a base temática do meu primeiro livro é a mesma do último. Sempre tive a convicção de que nós, como a noite e o dia, somos feitos de circunstâncias, circunstâncias que nos envolvem no mundo exterior. Não podemos fugir disso. È a única maneira de estarmos no mundo. Então, no primeiro livro, o que posso dizer, e que fiz, por assim dizer os poemas da invisibilidade, tentei captar o que há de invisível nas coisas do mundo para torná-las visíveis, tácteis e audíveis através do verso. Mas muitas vezes não consegui fazer uma diferenciação entre a linguagem do poema e a do panfleto. Aliás, para tristeza minha, é o que acontece hoje, com muita freqüência. Pensei que as pessoas de um modo geral tivessem amadurecido nesse sentido. Há uma diferença entre o simples panfleto e a metamorfose das circunstâncias exteriores numa verdade poética. Eu vi como era transitória a idéia do panfleto dentro do poema. Se hoje, por exemplo, disser no aeroporto de Florianópolis o poema que fala nominalmente de Kruschev e Kennedy e que faz uma clara referência à guerra fria ao muro de Berlim etc., esse poema é um testemunho localizado num tempo e nesse tempo ele tinha uma certa eficiência como panfleto, como grito, mas não tem nenhuma consistência, nenhuma durabilidade como um poema que se pretende ser para sempre. Hoje, se eu falar do muro, ou depois, alguns anos depois, quando eu comecei a falar do muro ou das diferenças, era uma outra maneira de situar as palavras para que elas realmente se interligassem para permanecerem. Eu quero que elas permaneçam para sempre um objeto estético e tenham alguma coisa a dizer não em termos específicos de muro de Berlim mas em termos específicos de diferença ou de solidão ou de angústia de qualquer momento, em qualquer lugar. Eu acho que essa é uma diferença muito clara. Nas minhas primeiras publicações eu tinha poemas, por exemplo, que falavam das longas filas do feijão que havia em São Paulo em 63 e 64 – eles viraram um vazio panfletário, pois isso sai toda noite na TV, as pessoas falam sobre isso diariamente. E eu estava escrevendo um poema falando da mesma maneira como as pessoas falavam numa linguagem absolutamente circunstancial. Não sou contra as circunstâncias muito pelo contrario sou a favor de todas elas, mas se eu fizer do poema apenas um objeto circunstancial ele não será mais que um objeto circunstancial e passageiro e não é o que eu quero, nunca mais quis quando tomei consciência disso.

FCC – Falemos um pouquinho da leitura de poesia. Observa-se que nem todo mundo sabe ler poesia. Isso não devia estar lá na base, na escola?
LB – Devia. E a poesia não só não é bem lida pela grande maioria das pessoas como é muito malfeita pela grande maioria dos poetas. Sou de opinião que em vez de se ensinar as crianças a lerem poesia na escola ou se ensinar a poesia da maneira como é ensinada o que se devia fazer era uma grande classe de professores para que eles não deformem a idéia do poema e da poesia. Não saber ler um poema se prende de repente a uma absoluta falta de naturalidade, de domínio da própria naturalidade. A gente sabe que a natureza tem um ritmo e o poema, que é um objeto natural da palavra, tem um ritmo próprio. É preciso ensinar às pessoas que existe um ritmo em cada poema . Não se pode ler um poema de versos livres como se lê um soneto, por exemplo. Eu acho que se tem de partir daí, isso é básico, uma coisa que é primária mas é primeira. Da maneira como o poema está sendo ensinado, é preferível que não o seja pois é uma distorção total.

FCC – Deve ser ensinado como a arte em geral.
LB – Sim, como a arte em geral. Se você quiser extrapolar, é só...

FCC – Como a música, a dança...
LB – A música, a dança, as artes plásticas, o cinema, tudo.

FCC – A idéia de ritmo, a noção de harmonia, colocadas na infância, não se perdem jamais. Como tu mesmo lembraste – o bandoneón do teu pai, as rimas, a métrica dos poemas de tua mãe. Isso fica.
LB – Ficou no depósito, no armazém do tempo.

FCC – E orienta inconscientemente para a produção e também para a leitura.
LB – Para a leitura também, claro, porque ler é uma maneira de ouvir. Ouvir é uma forma de ler. A primeira leitura que a gente tem das coisas – pelo menos a que eu tive – é a audição.

FCC – Por falar em leitura, o que é que estás lendo hoje, Bell?
LB – Tenho um livro de cabeceira, a Bíblia. E leio sempre as Cartas a um Jovem Poeta, de Rilke. No momento, de coisa nova, leio 0 Pêndulo de Foucault. Acho que estou mais forte na produção que na leitura...

FCC – 0 que parece ser, mais cedo ou mais tarde, um imperativo da criação.
LB – Chega um momento na vida em que a gente tem que saber saltar sobre a própria sombra É um momento de dor absoluta porque é um momento de renascimento. Agora, isso deve acontecer muitas vezes a quem se propõe uma tarefa criativa, porque senão fica uma tarefa menor .Acho que ser criativo é você ter essa permanente disponibilidade. Eu tento ser permanente, estar disponível o mais tempo possível para meus deuses interiores e para meus fantasmas. Como disse, às vezes é uma coisa muito dolorida, muito cruel, muito solitária mas para você chegar ao caminho da estrela ou ao caminho da luz existem muitos caminhos. 0 caminho que eu descobri foi este, abdicar de muitas outras coisas e tentar achar sempre a luz no fim do túnel, porque há um túnel permanente, mas há também uma luz permanentemente.

FCC – Se alguém te perguntasse, com toda objetividade, que papel tem o poeta na sociedade humana nos dias de hoje, que responderias?
LB – Sempre me pergunto isso e acho que o papel do poeta é ser uma luz na sociedade. Para que servimos, para que escrevemos, para que produzimos a beleza? Creio que nossa função é preservar a beleza. E a beleza agui é a circunstância do homem e os sentimentos. Essa é a função do criador, do artista, do poeta. Que outra função teríamos? Porque o resto as pessoas estão fazendo, elas estão preocupadas com todo o resto. Mas alguém tem que manter viva a chama do sentimento, o leque de possibilidades do homem como uma proposta inteira dentro do universo. Essa é a nossa função. Não existe outra. De uma certa maneira, talvez sejamos assim os ecólogos da própria alma, porque o que verdadeiramente sustenta o homem é a sua alma, o que faz ele durar é o que ele tem a dizer de alguma maneira profundamente ligado às coisas do invisível. Aliás, vocês levantaram um ponto que eu nem achei que fosse um ponto tão importante antes que a gente o abordasse. Uma coisa muito triste que vejo em Santa Catarina é a falta de frequentamento ou de freqüência das pessoas entre si nas diversas áreas criativas. Vê-se muito pouca frequencia de artistas plásticos em concertos ou em lançamentos de livros, de músicos em exposições de artes plásticas, de poetas em exposições ou concertos etc. E vou dizer mais uma coisa: enquanto não acontecer entre nós essa freqüência, jamais vamos ter um grande movimento de cultura barriga-verde. A arte se faz com circulação de idéias e é muito estúpido acreditar que só quem faz o poema é que está sabendo da beleza das coisas, que só quem faz música está certo. A cultura se faz de trocas. Quando vejo uma exposição de arte, vejo a beleza através da imagem da plasticidade. E essa imagem da plasticidade, como a imagem sonora do concerto, me induz a imagens que vou dizer com minha matéria-prima que é a palavra. Eu me intercambio. É o que temos que fazer aqui em Santa Catarina para termos um movimento real como existiu na Bahia ou existiu, em 22, em São Paulo. Eu nunca vi um grande relacionamento a não ser depois que a Galeria Açu-Açu começou a lançar livros junto com exposições, com pequenos concertos.

FCC – Um compartilhamento, uma relação de troca...
LB – Perfeitamente. A falta dessa relação é a mais triste das alienações, das limitações, pois o artista em toda a sua esfera acredita que tem a dimensão do mundo. Mas a dimensão do mundo é viver a dimensão do mundo, não é caminhar em linha reta, é descobrir que os caminhos estreitos e menos à vista podem esconder a fonte mais limpa ou a flor mais bonita.

FCC – Isso está um pouco ligado à religião também? 
LB – Acho que somos seres religiosos. Nós só não somos religiosos se não nos ligarmos ao mundo e a nós mesmos . Porque a religião é isso, é religar-se (religare) ao mundo .Ser religioso é estar ligado em contato com o visível e o invisível do mundo. Olha, acho que a grande religião seria exatamente essa de apenas nos religarmos entre nós. Não precisaríamos de nenhuma religião para nos ligarmos entre nós. A religião seria nós nos ligarmos. Isso nos daria uma dimensão de cada um. E, se tivéssemos uma dimensão de cada um, seriamos muito mais ricos e, se fôssemos mais ricos, seríamos menos preconceituosos e, se menos preconceituosos, mais amorosos.

FCC – Ótimo. Gostaríamos agora que falasses um pouquinho da poesia brasileira. A quais poetas te achas mais ligado ?
LB – Para mim, o maior poeta brasileiro, sem nenhuma duvida, foi Jorge de Lima. A Invenção de Orfeu é um monumento, um clássico. Claro que existem outros grandes nomes, como Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo. Na geração mais recente, Adélia Prado, ao menos em alguns poemas, em outros acho que ela passa pelo que se poderia chamar de uma panfletagem do coração, acho que se perde em muitos momentos. Affonso Romano de Sant'Anna é um bom poeta, Felipe Moisés, Roberto Piva. Há uma geração de poetas realmente fascinantes, que não têm nada a ver com tudo aquilo que se pretende considerar poesia brasileira, como chamar certos cantores de grandes poetas, uma coisa que eu acho de uma ignorância, de uma frescura universitária a toda prova. Não se pode confundir uma letra de música que pode ter muita poesia, com o poema, que é um objeto independente e tem uma outra proposta.

FCC – E os poetas alternativos?
LB – Em geral é panfletagem, em geral é aos montes, igual ao que se fazia nos anos 60, essa coisa toda do muro que as pessoas, de repente, acham que é uma grande poesia. A sede de novidade e de superficialidade é grande, mas nem tudo que é novo é bom, é uma estupidez achar isso. Tudo aquilo que se pensa que é novo, na verdade não é novo. A desinformação é tão grande que, se as pessoas lessem a Bíblia, não no sentido religioso mas no sentido de compreensão do mundo, sabem que está tudo lá, o fenômeno do homem. No fundo, o poema é fenômeno do homem. Escrever é fenômeno do homem, pintar é fenômeno do homem, viver é fenômeno do homem. Cada um tem sua maneira de dizer esse fenômeno, cada um escreve, cada um pinta o seu destino, lembrando que existe um destino amplo, universal a que todos nós pertencemos e que se chama beleza e dignidade. Somos responsáveis por isso, eu acho.

FCC – Bell, e o próximo livro?
LB – Todo livro que publiquei acho que é um livro maduro. Por isso fico relutando em editar o Anima Mundi e as pessoas vivem me cobrando: "Poxa, você desde 85 que não lança um livro!"

FCC – Há quanto tempo estás trabalhando nesse livro?
LB – Há quatro anos.

 FCC – E esse processo de trabalhar um livro como é que é? Diário?
 LB – É diário. Estou escrevendo o livro dentro de mim, é claro, diariamente. Mas escrever, acrescentar, mudar as palavras, esse é um processo mecânico, um processo muito difícil para mim, sabe? Para mim é muito mais fácil colocar as coisas no papel do que eliminá-las, porque tenho paixão pelas coisas que faço, acho que em todo sentido. Você não pode perder o timbre, não pode perder o ritmo, mas tem que deixar o essencial, todo grande poema deve ser como um soneto, apesar de não ser um soneto – qualquer palavra que você tira de um soneto, ele desaba, cai.

FCC – Não há nenhum perigo numa tão grande preocupação com a palavra exata?
LB – Não, eu acho que isso é que falta no Brasil, essa preocupação. Eu não quero escrever para hoje, quero escrever para sempre. É uma proposta minha, por isso eu digo que ela é tão cruel. Porque, de repente, ela é cruel para mim, ela não é o que eu quero, ela me obriga a posturas pra mim mesmo que podem ser muito duras comigo mesmo, mas eu acho que é por aí, eu quero ser lembrado, eu acredito nisso, acredito na durabilidade. Eu posso até não durar, mas vou fazer tudo para que minha obra tenha condições de sobreviver.

FCC – É portanto, uma preocupação fundamental...
LB – No meu caso é, pois tudo o que fiz até aqui é fundamental. Os caminhos são múltiplos mas, não fosse assim, tudo o que realizei em muito pouco tempo se tornaria a perfeita inutilidade. Circunstâncias apenas, de que já falei, mostraram meu lado estúpido, em termos de poema. Eu acho que ele tinha uma função social e histórica naquele momento mas acho que a função social dele é o resgate da dignidade e da beleza, através do próprio resgate dele também, porque se o poema não pode se resgatar vai resgatar as pessoas? Como é que vai resgatar o sentimento dos outros? E que falta de respeito é essa de você entregar pro cara um poema que é uma bosta dizendo que é um poema ? Não, eu tenho de entregar aos outros o que eu sei que é o melhor de mim, não o pior nem o mais ou menos. Mas eu tenho que ter convicção de que estou entregando para os outros um referencial máximo do melhor que posso fazer

.FCC – Falaste da disponibilidade do criador para receber, esperar. Às vezes as coisas vêm e a gente não está preparado – elas voltam?
LB – Voltam e somem, e nunca mais aparecem, e isso é que é o diabo. A noite, quantas vezes me levanto! Mas isso é tão natural, no fundo é tão natural.

FCC – A noite é uma grande companheira...
LB – À noite não se tem interferências, tudo dorme. 0 mundo está disponível. Então, o que é que acontece? Um mundo de energia está por aí. Encontrando um canal se chega lá. É lindo isso.Texto transcrito da publicação da Fundação Catarinense de Cultura

(Lindolf Bell : estudo biobliográfico, antologia/coordenação Silveira de Souza e Flávio José Cardozo. Florianópolis: FCC, 1990. 24p. (Escritores catarinenses: "Hoje", n.2)
by http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br/


Nenhum comentário:

Postar um comentário