domingo, 29 de agosto de 2010

TELA






















A Juarez Machado


Quando é novembro
E a primavera reina
Na cidade dos Príncipes,
É vez de arte-flor.

Gerânios e orquídeas,
Antúrios,violetas
Brotando das paletas
Do artista pintor.

Passa novembro!
Pose-flor-moldura...
Passa cor-gravura,
Flor-exposição!

Encerra-se a mostra,
Mas as flores ficam.
A festa de aromas continua
A colorir de todos os matizes,
Qualquer encanto,
Onde quer que pises...

É que o artista que pintou a Terra
Fica morando aqui!
E no sossego de todas as luas,
Passeia solitário pelas ruas...

Vai colorir os ipês, as azaléias,
Vai retocar o roxo dos jacatirões...
Suspende as buguenvílias,
Os ramos de alamanda,
E acaba cochilando
Nos caramanchões...

Depois de novo acesso,
Retoma a caminhada,
Antes que a leda madrugada
Descubra seu pincel.

Pinta os jardins,
Os vasos das janelas,
Transforma as praças da cidade
Em telas,
para a surpresa,
A cores,
De cada amanhecer...

Mila Ramos
In Pé de Vento
tela by Juarez Machado

terça-feira, 17 de agosto de 2010

AS ESTAÇÕES DA VIDA






















- A Primavera chega muito linda.
Trazendo nas mãos, um "bouquet" de flores.
Perfumando de sonhos nossa vida.
E semeando risonha seus amores.

- Vem o Verão, inesperadamente.
O seu calor inflama corações.
Todo ar se pulveriza de paixões,
Mostrando-nos a vida diferente.

- Mas o outono, não se faz esperar.
Vão os nossos castelos todos ruindo.
Fios brancos começam a brilhar,
Sob os sonhos que tristes vão sumindo.

- Então o Inverno chega se arrastando.
Traz na cabeça flocos de algodão.
Nossa final morada vai mostrando,
Nos levando seguros pela mão.

Yedda Lamounier
In Soluços do Coração
tela by Frederick Morgan

domingo, 15 de agosto de 2010

PEQUENAS EPIFANIAS




Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor.

E você sabe a que me refiro. Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas. Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração.

Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia. Era isso - aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania.

Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

Caio Fernando Abreu
(Publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", 22/04/1986)
Imagem by Richard Osbourne

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

DEVER DE SONHAR




















Eu tenho uma espécie de dever, dever de sonhar, de sonhar sempre,
pois sendo mais do que um espetáculo de mim mesmo,
eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.
E, assim, me construo a ouro e sedas, em salas
supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho
entre luzes brandas e músicas invisíveis.

Fernando Pessoa

terça-feira, 3 de agosto de 2010

NAUS FRÁGIOS



























aqueles barquinhos
levados pela águas

das chuvas

foram meus primeiros naus

frágeis

Marcos Vasques
Cão no Claustro
tela Ship Boat Travel Journey

domingo, 1 de agosto de 2010

UM CASO DE AMOR


A menina viu a lua cheia
derramar-se em prata sobre a areia.
Encantada, esticou-se toda
e desatarraxou a bola
do fundo azul-marinho.
Saiu de mansinho
e guardou a lua em casa
sob uma redoma de cristal.
Sabia que o gato rondaria no quintal, louco de desejo
eterno caçador de ratos e de queijos,
só que a lua, hábil e esperta,
derrubou o cristal
e escorregou pela janela aberta.
Naquela noite, então,
a terra revirou-se de paixão
e o mundo amou como nunca amara antes
estava de volta a lua,
cúmplice dos beijos e segredos dos amantes.

Flora Figueiredo
tela by Myriam Lakraa