sexta-feira, 30 de julho de 2010

A VIDA PRECISA DO VAZIO

























A vida precisa do vazio:

a lagarta dorme num vazio chamado casulo
até se transformar em borboleta.
A música precisa de um vazio chamado silêncio para ser ouvida.
Um poema precisa do vazio da folha de papel em branco para ser escrito.
E as pessoas, para serem belas e amadas,
precisam ter um vazio dentro delas.
A maioria acha o contrário;
pensa que o bom é ser cheio.
Essas são as pessoas que se acham cheias de verdades e sabedoria
e falam sem parar.
São umas chatas quando não são autoritárias
Bonitas são as pessoas que falam pouco e sabem escutar.
A essas pessoas é fácil amar.
Elas estão cheias de vazio.
E é no vazio da distância que vive a saudade....

Rubem Alves
Tela by Vincent Van Gogh

O QUE EU AMO...























Amo o silêncio dos lagos,
A viração das campinas,
Amo o céu, a paz dos ermos
E as estrelas peregrinas..

Amo a vida, o espaço, o sol,
A esperança que suponho
Ser minha eterna guarida
Nos trigais loiros do sonho..

Amo as aves intranqüilas,
Nos bosques cantando amores,
Amo a linda primavera
Que traz sonhos, sons e flores..

Amo o remanso das noite,
A nostalgia do luar,
Também amo as pequeninas
Estrelas do teu olhar..

Zoraide Leonel Ferreira
Tela by Vincent Van Gogh

terça-feira, 27 de julho de 2010

A RONDA DO GIRASSOL GUARDIÃO




























O guarda-noturno
viu.
Ele contou
que , de noite,
o relógio da matriz
marca as horas do amor.
-Às vezes, por um triz,
o vigário não pega
o relógio cupido,
das horas, todo despido,
para o amar dos ponteiros.
É que,
ao encontro, os dois
- ela, a Hora,
ele, o Minuto -
passam o noite abraçados
marcando tempos iguais.
E, madrinha,
a Lua ri.
A noite, alcoviteira,
se alarga,
se espalha,
cresce.
E só quando, de amor,
a Hora grita,
- Só aí o dia vem,
diz o guarda.
E, então, apita.

Mila Ramos
In Na Grande Noite dos Girassóis
Tela  by  Vincent Van Gogh

CANÇÃO DA BRINCADEIRA



























Não sei se agora brincam
das coisas que brinquei.
As escolinhas desenhadas no terreiro,
roupa de folha costurada com espinho,
sapatos altos feitos de carretel,
brincar de roda,
de passar anel,
pular boneca riscada no chão,
jogar baguinha
e fazer, de carochas,
carrocinhas;
de sabugo de milho,
carrinhos de boi.
Ah! Tempo de menina que se foi...
Tempo de cozinhado de quintal,
de brigar com a amiga e ficar de mal,
de pular corda " fogo" ou devagar
e de fazer pelota pro irmão caçar.
Tempo de sonhar
que a mesa era piano
e cantarolar, ninando,
uma bruxa de pano.
Faz tempo,
tanto tempo que nem sei,
nem sei
se agora brincam
das coisas que brinquei.

Mila Ramos
In Na Grande Noite dos Girassóis
Tela by Sophie Anderson

A IDADE DA FELICIDADE



Um sábado de sol pleno, nenhum biombo entre a luz e a terra. Há quanto tempo o vivente não desfrutava de uma sequência assim iluminada, trégua para os dias de chuva e vento? (Desejo que manifesto ao escrever 24 horas antes, mesmo sabendo que a previsão insiste em anunciar mais chuva. E se já está chovendo, leitor, abra o seu próprio sol, como quem liga um interruptor na natureza).

O tempo influi decisivamente na psiquê das pessoas, um sábado de sol costuma ter o efeito de uma alucinação coletiva, arrebatamento que leva o homem a pensar que a felicidade até existe.

Felicidade. O que será? Júbilo, prazer, bem-estar, satisfação, qualquer que seja o seu nome, a felicidade é um pequeno frasco, administrável a conta-gotas — e facilmente quebrável. Na minha infância, simplesmente atendia pelo nome de sábado. Dia de festa, ar livre, euforia ao sol — especialmente este soleil puro e descoberto, como o do pré-outono.

Às vezes, era convocado por minha avó para acompanhá-la à missa do sábado. Bem na hora do Angelus, a Ave Maria, de Charles Gounod, inundava o espaço etéreo no Momento da Prece. A missa de véspera, às 18h, “valia” pela missa de domingo. Com a vantagem de liberar a manhã do dia santo só para a matinada do Cine São José.

Uma vez na capela do Menino Deus, o garoto ficava indócil. Passava o tempo olhando os fiéis em volta, compenetrados em acertar o “dó de peito” na hora em que o padre convidava:

— Caríssimos irmãos, página 17, vamos cantar o Queremos Deus…

“Homens ingratos”, reclamava o refrão. Mas quem poderia culpar a inquietude das crianças na missa, roídas pelo tédio e pelo tempo que custava a passar?

Sábado era, também, a tarde dos seriados no Cine Roxy. Os Perigos de Nyoka, Capitão América, O Vencedor, O Cavaleiro Negro, Diana e o Fantasma Voador, Hopalong Cassidy, A Volta de Jesse James, Tarzan, O Destemido, Dick Tracy, o Detetive — e outros hits do celuloide cor de sépia.

Se houvesse circo na cidade, o dia, mesmo num sábado, não poderia ter sido de sol. Era tempestade na certa. Aliás, furar a entrada do circo era, na chamada segunda infância, o supremo orgasmo da felicidade. Venturosa sensação, a de ter enganado o porteiro e assistir, ainda que do pior poleiro, todo o espetáculo de graça. Como herança da proeza, vistoso buraco nos fundilhos — obra e graça do arame farpado. Cerzir a calça ia custar mais caro do que o ingresso, mas “furar” o circo era um rasgo de pura felicidade — e a calça rasgada, apenas uma bronca materna, aliviada pela avó.

Sábado de manhã havia aula. No Catarinense e no Coração de Jesus. Era um pouco mais sério o calendário, mais completas as horas-aulas e a própria qualidade do ensino. As manhãs de sábado ficavam mais coloridas, com o esvoaçar dos uniformes plissados das meninas do “Coração”.

Essa outra felicidade já pertencia à adolescência: “dar plantão” ao meio-dia, na saída do Coração de Jesus. Era tocar o sino e — por encanto! — produziam-se centenas de meninas em flor, butterflies em animado alarido. Hora de puxar o Hollywood com filtro do bolso e engrossar a voz hesitante. E, diante das moças, acender o cigarro com a experiência de um Mr. Bogart, Humphrey Bogart — cada menina no papel de uma infantil Ingrid Bergman. Era preciso “investigar” aqueles seres belos e delicados, estranhos, muitas vezes, adoráveis, quase sempre.

Fugaz felicidade. A princesa de ontem — que remetera promessas no olhar — no dia seguinte dedicaria sua atenção a outros súditos, garotos mais encorpados, cujo “gogó” — o tal pomo-de-adão — subia e descia no meio do pescoço. O meu era “embutido” — prova, talvez, de minha precoce presença naquela revoada galante, à saída do colégio das freiras

Digo tudo isto apenas para concluir: a felicidade na idade madura é um pássaro esquivo e platônico. “Ninguém é mais feliz depois dos 30″ — advertira Baudelaire, o poeta maldito.

Um radical, certamente. Em homenagem ao sábado, amenizo as azias do poeta e digo que, depois dos 30, a única felicidade consiste em perseguir a felicidade…


Sérgio da Costa Ramos
Tela La Tarantella, 1879 by Leon Jean Perrault


BULLING

A verdadeira enxurrada de palavras inglesas na sociedade brasileira mostra o alcance da dominação cultural que submete a linguagem e a mentalidade coletiva de um povo. As belas palavras da língua portuguesa são substituídas pela estúpida cacofonia do anglicismo, denotando a corrupção da cultura nacional. O governo francês recentemente enviou projeto de lei ao Congresso daquele país proibindo o uso indiscriminado de expressões inglesas em propagandas e publicações. O texto foi aprovado. Mas, no Brasil, a proteção da nossa cultura linguística diante da engrenagem sígnica da consumologia corruptora de valores e tradições está longe de acontecer. A maquinaria de signos e fetiches imposta pela dinâmica do capitalismo de consumo também colabora no desenvolvimento do chamado caráter narcísico individual e grupal.

O funcionamento narcísico do caráter é a forma mais ajustada ao desenvolvimento da parafernália consumológica. Narciso não é somente a mitologia do espelho, mas, igualmente, a vaidosa afirmação individualista com a negação concomitante da importância das outras pessoas. A arrogante personalidade narcísica busca o prestígio na marca-grife numa desenfreada competição invejosa, na qual a aparência do objeto é mais importante do que sua utilidade real.
Por outro lado, a inveja, irmã siamesa do ódio, determina uma rancorosa atitude contra as pessoas consideradas hierarquicamente inferiores. Qualquer pequena diferença em relação à moradia ou ao bairro ou à marca do automóvel é razão suficiente para determinar o lugar que na coletividade cada pessoa deve ocupar. As campanhas de inclusão vão na contramão deste processo que por natureza é excludente.

Os grupos humanos na economia, na política e na academia têm uma tendência a se diferenciar pelo patrimônio, pelo nível de poder alcançado e pelo saber acumulado. Na coletividade isso faz com que os sudestinos se acreditem mais importantes que os nordestinos enquanto em Fortaleza, quem está trepado nas Dunas, olha com desprezo os da Parquelândia. As zonas de consagração acadêmica e literária do sul-sudeste tendem a menosprezar os literatos e cientistas do norte-nordeste.

O fetichismo consumista estimula o ódio destrutivo tanto na paz quanto na guerra. A crueldade do indivíduo ou do grupo nas condições do narcisismo estimulado pela mídia torna-se um problema de saúde pública tanto no trânsito quanto na escola. A vestimenta ou a mochila do colega são signos de status que estimulam a ira narcísica de uns e a revolta ou submissão de outros. A maldade dessa situação é tanto maior porque as pessoas com menor poder aquisitivo entram em desespero para atender às solicitações dos filhos.

Por outro lado, como na hierarquia consumológica o saber é menos importante que a aparência, os grupos desenvolvem refinadas técnicas de falsificação e mentira. Os que não entram na vulgar jogatina são tidos como esquisitos e na escola são chamados de nerds. O verbo inglês to bully significa amedrontar alguém para obrigá-la a fazer algo. Assim, o grupinho narcísico inconsciente das suas próprias fantasias tenta enquadrar ou expulsar “o diferente” que se tornou incômodo. O problema desta engrenagem consumista é que não há como parar a máquina senão destruindo-a.
A situação limite implica que dentro do contexto capitalista é impossível por fim a tal loucura. O mecanismo é tão extraordinariamente desumano que impede a ligação afetiva entre as pessoas, ao mesmo tempo em que anula a capacidade crítica do pensamento humano. As imagens substituem o discurso que a escola e a academia tentam por em marcha. Desde cedo, as crianças são condicionadas para, no futuro, se tornarem consumidores compulsivos, meta ideal desta engenhoca terrorífica.

Os escolares divididos hierarquicamente em grupos narcísicos marcados por pequenas diferenças invejam os considerados superiores, enquanto desprezam todos aqueles imaginados abaixo da escala estatutária. A crueldade infantil estimulada cria nas crianças estúpidas desigualdades, enquanto a juventude em desespero encontra no crack e na cocaína a ilusão da felicidade.

Valton de Miranda Leitão - Psicanalista
Tela by  John William Waterhouse





segunda-feira, 26 de julho de 2010

SONHO



























Um dia os homens acordaram
e estava tudo diferente
das armas atômicas nem sinal havia
e todos falavam a mesma língua
falavam poesia
quem visse a Terra do alto
nem reconheceria
eram campos e campos de trigo
e corações de puro mel
e foi uma felicidade tamanha
nos jornais nem um só crime
que contando ninguém acreditaria.

Roseana Murray
In Lições de Astronomia
tela by Aline Bureau

ESTRELA CADENTE






















Quando eu estiver
com o olhar distante, maninha,
com um jeito esquisito
de quem não está presente,
não se assuste, ó maninha,
fui logo ali, no quintal do céu
colher uma estrela cadente.

Roseana Murray
In Lições de Astronomia
tela by Corinne le strat

domingo, 25 de julho de 2010

AS PALAVRAS



























As palavras apodrecem se a irrupção da fonte cessa,
se o poço não encerra a brasa da respiração.

As palavras apodrecem nas noites sem lua
e abandonadas ali - cinzas somente - as palavras
esperam pelo milagre da voz que resgata do limbo
âncoras,corações e abismos.

Palavras: minúsculos hipocampos?

Fernando Karl
In Diário Estrangeiro
foto da Galeria de El playu no Flickr

CILADA VERBAL





















Há vários modos de matar um homem:
com o tiro, a fome, a espada
ou com a palavra
- envenenada.

Não é preciso força.
Basta que a boca solte
a frase engatilhada
e o outro morre
- na sintaxe da emboscada.

A.Romano Sant'Anna
In Epitáfio para o Século XX
foto da Galeria de idg no Flickr

CONVERSANDO COM JOVENS por Affonso Romano


Que conselhos dar aos jovens? Ou melhor, se lhe convidassem para fazer uma palestra para a meninada entre 12 e17 anos a respeito da vida e do nosso tempo, o que você diria? Nelson Rodrigues, que gostava de fazer frases de efeito, dizia que devemos aconselhar ao jovem: "envelheça!"- como se isso fosse uma fórmula salvadora. Não é verdade. Muita gente envelhece e não cresce, cria casca e não amadurece.

Digo isto porque nesses dias fui falar para jovens em São Paulo e Minas. Primeiro, lembrei-me da célebre "Oração aos moços" proferida por Ruy Barbosa em 1920 aos formandos de direito. Fui ler o texto do "Águia de Haia". Quase ilegível hoje. Se espremer sai pouca coisa, além da velha retórica. Lembrei-me também de peças de teatro e romances onde um velho dá conselhos a um jovem que parte para a guerra ou para a vida.

Esses textos não me socorrem. O mundo é outro. Venho do paleolítico, ou seja, do século XX, um período assás estranho tanto na história do homo sapiens quanto na do homem ignorante. E constato que o século XXI, onde essas moças e moços estão, é bem diferente. No meu tempo os jovens eram predominantemente virgens. Achava-se que o mundo era dividido entre esquerda e direita. E pensava-se que a história seguia um rumo determinado. Havia a "guerra fria", não havia internet nem celular.Como dizia Rubem Braga, sou do tempo em que telefone era preto e geladeira era branca.

Olho o mundo dos jovens, essa sociedade a que chamam de pós-moderna, sociedade pós-industrial, aldeia global. O que fazer diante do apocalipse desencadeado não pelas armas atômicas, mas pelo derretimento da calota polar, a erupção de vulcões e tsunamis,? O que fazer diante das cidades entulhadas de carros, da poluição que sufoca nossos pulmões urbanos? Que fazer da eroticidade perversa e desgovernada despejada em catadupas sobre todos?

Se pudesse fazer alguns alertas ou deixar algumas sinalizações na estrada, eu diria aos jovens,cuidado com algumas palavras como interatividade, transgressão, relativismo ,anti-arte, etc.

Por exemplo:
1. a interatividade é formidável, possibilita intercâmbios, mas há o risco do discurso vazio, troca apenas de ruídos, um blá-blá-blá que bloqueia os fones da consciência;

2. a ideologia dominante abomina hierarquias. Mas hierarquias podem ser perversas ou construtivas. Não existe sistema sem leis, normais, regras. A pregação da quebra de normas, é simplesmente outra norma;

3.cuidado com o pensamento relativista. As coisas não se equivalem.O carbono tem certas propriedades que não são a do fósforo, todo ser humano tem algo pessoal . A voracidade metonímica tenta nos convencer que os sujeitos são objetos que podem ser trocados uns pelos outros;
4. alimentada pelas vanguardas há cem anos, nossa cultura apaixonou-se pela transgressão. Já não se trata de transgredir algo, mas de transgredir a transgressão. Isto é um paradoxo. Já se transgrediu tanto, que se poderia fazer um "museu da transgressão"- a transgressão já foi codificada. Antes, erroneamente se dizia: "não transgrida", hoje perversamente se diz- "transgrida"; desde modo quem obedece a ordem de transgredir não está transgredindo, mas obedecendo ordens;

5.nos globalizaram. Foi ótimo por um lado. Por outro lado, desnorteador. Ganhamos em aproximação com o "outro", o longínquo ficou próximo. Mas o "outro" virou um invasor de nosso espaço econômico, social e subjetivo. Indivíduos e culturas estão se sentindo, de certo modo, desenraizados, uma universalidade aérea, vazia;

6.a natureza está cobrando dívidas. Gerações anteriores assinaram cheques em branco sobre o futuro, as riquezas pareciam inesgotáveis. A "mãe natureza" não cobrava nada. Não era verdade: vulcões, tsunamis, secas, degelos e fome nos espreitam. Pela primeira vez todas as populações da terra são responsáveis por tudo. Confirmou-se o principio zenbudista de que o ruflar de asas de uma borboleta no oriente ocasiona um turbulência no ocidente.

7. A sociedade atual é uma sociedade "matrix". Exuberante. Mistura o falso e o verdadeiro, o real e o virtual. Cultiva o "fake" e o "cover". Pior: toma o lixo por luxo, centraliza contraditoriamente a periferia. Com isto, narciso vive num jogo confuso diante do próprio espelho.

8.Retrato mais sintomático dos nossos paradoxos é a arte de nosso tempo: a produção de enigmas vazios, produtos que se gabam de não significarem nada, como se o faminto imaginário humano pudesse se alimentar do vazio e se contentasse com a esterilidade criativa.

Ser jovem nunca foi fácil. E desde que nos anos 60 instituiu--se o "poder jovem" a coisa tornou-se mais complexa. Estar no poder é coisa de muita responsabilidade. Rimbaud dizia: "não se é sério aos dezessete anos". Será?

Cabe a vocês demonstrar se ele tinha ou não razão.

(*) ESTADO DE MINAS, 23.05.2010
http://www.affonsoromano.com.br/blog/index.php?atual=60&min=20&max=24

sábado, 24 de julho de 2010

SÃO ESTAS AS CORES






















Se alguém tens
de agradecer, agradece
primeiro a vida.Por isto,
quanto mais não seja: por teres
nascido de pé e de pé
resistires aos temporais
como as árvores
de raízes fundas.Como a elas,
só te arrancarão à força.Podem,
então, encher-te a boca
de terra os olhos olhos
de sal.São estas
as cores da vergonha.

Albano Martins
In Escrito a Vermelho
Tela by Bryan F. Peterson

sexta-feira, 23 de julho de 2010

AS IMENSAS CURVAS DO VENTO





















Esse animal brilhante e impossível do espírito.
Mário de Andrade

Loas às imensas curvas que o vento
esqueceu

na cumeeira dos casarios de arquitetura açoriana.
Casarios noturnos, de janelas toscas,

escorrendo luz pelos lados,
a cavaleiro da entrada do cais do Porto.

Casarios solares, de janelas brancas,
envolto em puro abandono:

a luz sobre os telhados é a eternidade.
Sentada num deles,

a oriente da ilha de São Francisco do Sul,
a espiã grava em canivete no pergaminho:

- No país dos anjos só tem rádios!

Fernando Karl
In Casa de água
foto da Galeria de Lizandro Chrestenzen

O MAR É AZUL


















O mar é azul porque imita o céu,
que é azul porque imita a morte,
que é azul porque imita a vida,
que é azul porque imita o mar...
Por isso vivem todos tão unidos

O mar é reunião
de todos os rios que já foram
(inclusive os gregos).
dos que são e dos que ainda virão.

Vicente Cechelero
foto da  Galeria de AGrinberg no Flickr

quinta-feira, 22 de julho de 2010

SE TODAS AS TUAS NOITES FOSSEM MINHAS























Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa
E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.
Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.

Hilda Hilst
tela by Vincent Van Gogh

VIVER




















Atravessar a vida
como a vida vem,
tão displicentemente
quanto nuvens soltas
que nem sabem que a chuva
é sangue
nas veias do chão,

não é viver de gente
Viver é diferente.

É suar
e de suor nutrir a terra.
É sentir
e de sentidos preencher vazios.
É ouvir e dizer,
perguntar e responder,
brigar e desistir,

ansiar,sofrer,sorrir,
e sobre todos
e sobretudo,
amar.

Mila Ramos
In Em Surdina
foto da Galeria de ling_japan no Flickr

AUTO-RETRATO




















Em meu rosto
a vida começa
a bordar seus desenhos
Riscos, linhas
rugas suaves
no canto dos olhos
na curva da boca.

Miriam Portela
Imagem  by Ken Purdie

RUBIS AO VENTO






















ouvir ao vento,
ao virar vento

Ouvi de tua boca o silêncio, ansioso
de uma palavra hebraica, sem ânsia
Andamos entre ruínas circulares
com Borges e alefes e golens...
descobrimo-nos nas solidões
tropicais, involuntariamente.
A palavra acumulada de nostalgia
do eco de um antigo deus ausente:
ecos divinos, arcaicos livros vivos.
Ouvi de tua boca o silêncio, ansioso.

Vicente Cechelero
In Blog Poesia Brasileira
Tela by Ron di Scenza

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A SOLIDÃO AMIGA


A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...

Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.

Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, “parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.

Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.“ Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.

Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:

“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.!“

Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que “o inferno é o outro.“ Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia... Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:

“Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.

Ali as palavras e os tempos
poemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar.“

E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, “certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa – garrafa, prato, facão – era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção (...) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (...) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia.“

Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.“ É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.

E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:

“...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília...“

Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha.
O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão...

A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.
Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem minha solidão feliz.

Rubem Alves
Correio Popular, 30/06/2002
Foto da Galeria de ichiro kishimi

8























Sopra um vento em Pequim.
Árvores altíssimas respiram pássaros.
Entre eles é fácil ouvir o que sobra
do movimento dessa luz.
O vento me ergue pelos braços, me leva à copa
da mais alta árvore.
Agarrado aos galhos não sinto medo de nada.
Daqui de cima posso ver
que a esquina sopra com o vento.

E assim igual o vento,
passa minha vida,
entre a pedra e a flor.

Fernando Karl
In Esquina,China e Outros Poemas
foto da Galeria de ichiro kishimi no Flickr

terça-feira, 20 de julho de 2010

AMIGO QUERIDO






















Por onde andamos
nós que raramente nos falamos?
Engolidos pela pressa
ou pela saga do compromisso?
O'Deus que maratona é essa?

Deixo um recado de saudade
para você pensar.
Por mais que a vida corra e o mundo agite,
por favor, acredite:
o nosso coração não muda de lugar.

O tempo e a distância
costumam nos arrastar.
É como se folhas de outono
se separassem pelo sopro de algum vento.
Mas nosso coração não muda de lugar.

Conservo a mão estendida,
o peito aberto,
o ombro compreensivo,
o pensamento alerta.
A qualquer hora você pode me chamar.
O meu carinho permanece vivo.
É que o nosso coração não muda de lugar.

Flora Figueiredo
tela by Winslow Homer

domingo, 18 de julho de 2010

JULHO



























Foto by http//www.nossajoinville

É julho.
O inverno brinca
de esconder com o sol
ou é a primavera
que chegou mais cedo?
As azalléias desabrocham,
espalhando cores
pela cidade.
A música
chega de mansinho
pelas ruas e palcos
e os bailarinos vão surgindo
prá recitar
a poesia do corpo.
E a alegria
comemora o inverno
em Joinville...

Luis Carlos Amorim