domingo, 17 de outubro de 2021

V




Há metafísica bastante em não pensar em nada.
 O que penso eu do mundo?
 Sei lá o que penso do mundo!
 Se eu adoecesse pensaria nisso.

 Que ideia tenho eu das cousas? 
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
 Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma 
E sobre a criação do Mundo?
 Não sei.
 Para mim pensar nisso é fechar os olhos
 E não pensar. É correr as cortinas 
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

 O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
 O único mistério é haver quem pense no mistério.
 Quem está ao sol e fecha os olhos,
 Começa a não saber o que é o sol
 E a pensar muitas cousas cheias de calor. 
Mas abre os olhos e vê o sol, 
E já não pode pensar em nada,
 Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos 
De todos os filósofos e de todos os poetas.
 A luz do sol não sabe o que faz
 E por isso não erra e é comum e boa. 

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
 A de serem verdes e copadas e de terem ramos
 E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
 A nós, que não sabemos dar por elas.
 Mas que melhor metafísica que a delas,
 Que é a de não saber para que vivem 
Nem saber que o não sabem? 

"Constituição íntima das cousas"... 
"Sentido íntimo do Universo"... 
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. 
É incrível que se possa pensar em cousas dessas. 
É como pensar em razões e fins 
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das 
                                                                                  [ árvores
 Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

 Pensar no sentido íntimo das cousas
 É acrescentado, como pensar na saúde
 Ou levar um copo à água das fontes.
 O único sentido íntimo das cousas
 É elas não terem sentido íntimo nenhum.

 Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
 Sem dúvida que viria falar comigo
 E entraria pela minha porta dentro
 Dizendo-me, Aqui estou!

 (Isto é talvez ridículo aos ouvidos
 De quem, por não saber o que é olhar para as cousas, 
Não compreende quem fala delas
 Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

 Mas se Deus é as flores e as árvores
 E os montes e sol e o luar,
 Então acredito nele,
 Então acredito nele a toda a hora,
 E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
 E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

 Mas se Deus é as árvores e as flores
 E os montes e o luar e o sol,
 Para que lhe chamo eu Deus?
 Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
 Porque, se ele se fez, para eu o ver,
 Sol e luar e flores e árvores e montes,
 Se ele me aparece como sendo árvores e montes
 E luar e sol e flores, 
É que ele quer que eu o conheça 
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

 E por isso eu obedeço-lhe,
 (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
 Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
 Como quem abre os olhos e vê,
 E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
 E amo-o sem pensar nele,
 E penso-o vendo e ouvindo,
 E ando com ele a toda a hora.

Alberto Caeiro
de Ficções do Interlúdio
arte Vincent Van Gogh

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