"Os tempos atuais são dramáticos. Isso não representa ainda uma tragédia anunciada. Mas significa seguramente uma grande crise de civilização".
O comentário é do teólogo e filósofo Leonardo Boff em entrevista exclusiva a Ana D´Angelo do Brasil de Fato, 21-03- 2011.
Eis a entrevista.
Como escutar o grito da Terra em um sistema político-econômico surdo para o que não é veloz, lucrativo e produtivo?
Há uma confrontação total entre o sistema econômico vigente e o sistema-vida e o sistema-Terra. Aquele busca a produção cada vez maior em vista do consumo que exige a depredação da Terra e como consequência a produção de perversas desigualdades sociais. Estes visam o equilíbrio de todos os fatores para que a Terra possa manter sua capacidade de reposição dos recursos usados por nós e de integridade de sua natureza. O primeiro tem essa preocupação: quanto posso ganhar? O segundo: como posso produzir em equilíbrio com a natureza e preservando sua vitalidade? Enquanto essa equação não se resolver o grito da Terra nunca será ouvido. E a degradação continuará até um limite não mais suportável que se revela pelo aquecimento global. Aí a humanidade deve resolver: ou mudar ou ir desaparecendo.
A sustentabilidade tem sido usada por vários setores da sociedade para indicar falsas preocupações ambientais, produtos que se autodenominam verdes, empresas que se dizem responsáveis socialmente, mas não o são para com empregados, clientes etc. Frente ao consumo em escala gigantesca, o termo sustentabilidade ou a causa ambiental não estariam sendo absorvidos por um modo de produção que se mostrou fracassado e agressor da vida?
A sustentabilidade e o crescimento econômico obedecem a lógicas diferentes. A sustentabilidade pressupõe a interdependência de todos com todos, a cooperação e a coevolução de todos, respeitando cada ser por possuir valor intrínseco. O crescimento econômico é linear, pressupõe a dominação da natureza e o uso utilitarista dos seres que apenas tem sentido na medida em que se ordenam ao ser humano. A sustentabilidade representa um novo paradigma que se opõe ao paradigma de violência contra a natureza. Exige um novo acordo de sinergia, de respeito e de sentimento de pertença à natureza sendo a parte consciente e responsável dela. A utilização que se faz da sustentabilidade pode melhorar alguns aspectos da redução de gases de efeito estufa, mas não muda a lógica de pilhagem da natureza em vista da acumulação. A Terra será sempre vista como um baú de recursos, nunca como Gaia, como Grande Mãe, um superorganismo vivo que se autorregula de tal forma que sempre se faz apto a produzir e reproduzir vida.
Como cada um pode colaborar para a reversão da falência da forma de vida e produção que temos até hoje? Em entrevista por ocasião dos 70 anos do senhor, o senhor teria dito: “Nunca aceitei o mundo assim como está”.
A crise é global e por isso atinge a cada um. E cada um é convocado a dar a sua colaboração Uma gota de água caída do céu não significa nada. Mas milhões e milhões de gotas produzem um grande chuva e até uma tempestade. Devemos pensar em termos quânticos: tudo tem a ver com tudo em todos os momentos e circunstâncias. Tudo se encontra inter-retro-conectado. Então, o bem que pessoalmente faço não fica reduzido ao meu mundo. Entra no circuito das interdependências e pode deslanchar grandes mudanças. Se não posso mudar o mundo, sempre posso mudar esse pedaço de mundo que sou eu mesmo. E aí pode se encontrar a semente de uma grande mudança.
Me lembro ainda de um artigo do senhor em que propunha refundar a ética diante da crise mundial de valores. Que caminhos temos hoje neste sentido?
Todos os códigos éticos atuais provêm de culturas regionais. Cada cultura produz seus parâmetros éticos para poder criar a convivência mínima entre todos. Ocorre que hoje vivemos uma fase nova da Terra e da Humanidade, a fase planetária. Todos estamos juntos na mesma Casa Comum. Ninguém tem direito de impor seus valores particulares ao todo. Por isso deve-se refundar a ética a partir de algo básico, comum a todos, de forma que todos possam se identificar com aqueles valores e princípios. Eu vejo que o eixo se estrutura ao redor dos valores ligados à vida, à Humanidade e à Mãe Terra. Para mim cinco são os valores de base: o cuidado para com todo o ser; a compaixão para com todos os que sofrem na espécie humana e na natureza; a cooperação de todos com todos porque foi a cooperação que nos permitiu o salto da animalidade à humanidade; a corresponsabilidade por tudo o que existe e vive; devemos ter consciência das conseqüências de nossos atos, alguns dos quais podem ser letais para toda a espécie humana; um senso mínimo espiritual segundo o qual a vida tem sentido, o universo não é absurdo, a verdade sempre representa um valor e o amor é o laço que une todos os seres e traz felicidade à vida.
Um fórum chamado Geopolítica da Cultura, realizado em novembro de 2010 na Cinemateca, em São Paulo, partiu do pressuposto que as novas economias reunidas no Bric já emergiram e a elas caberá definir o novo papel no mundo que se conforma pós-crise. O senhor acredita nessa possibilidade de gestão autônoma e criativa dos ex-emergentes? O Fórum propôs ainda uma transformação da singularidade cultural brasileira em valor estratégico que beneficie o povo. Pouco depois do final do Fórum, vimos explodir o conflito do tráfico e milícias e polícia no Rio de Janeiro. Ou seja, no outro extremo, outra singularidade brasileira, a violência, tomou a cena. Gostaria que o senhor comentasse.
Os Brics são importantes porque, formando o Grande Sul, quebram a hegemonia do Norte e obrigam as potências econômicas e militaristas a ouvi-los. Na medida em seu peso se fizer sentir, podem definir certos rumos do curso da história atual. Mas em termos de paradigma eles são miméticos: imitam as lógicas de potências ocidentais, lógicas essas que levaram a Terra à atual crise. Elas não são alternativas. Antes, podem acelerar a gravidade da crise. Se a China e a Índia quiseram consumir como o Ocidente (e cada um desses países possui uma classe média de pelo menos de 300 milhões de pessoas) seguramente irão desestabilizar o processo produtivo da Terra, com reflexos imediatos na política mundial. Esta não terá suficientes recursos para atender às demandas desses novos consumidores. Já dizia Gandhi em 1950: “Se a Índia quiser ser como a Inglaterra, ela precisa de duas Terras. A Terra é suficiente para todos mas não o é para os consumistas”.
Quanto mais informadas as pessoas e desenvolvidas as cidades, vemos uma preocupação maior com a sustentabilidade, reciclagem, reuso, alimentação orgânica, preservação dos biomas, plantio de árvores. Entretanto, valores como a solidariedade e ações coletivas ainda encontram obstáculos em sociedades/cidades cada vez mais egoístas, inseguras (literalmente) e materialistas. O senhor concorda? Que caminhos enxerga para as grandes cidades e seus habitantes?
Eu acho que o problema todo se resume numa relação nova para com a natureza e a Terra. Devemos partir da constatação de que pertencemos à natureza, somos a parte consciente e amante da Terra e simultaneamente a parte desequilibradora e destruidora dela. Temos a mesma origem e teremos o mesmo destino. Então se impõe uma relação de sinergia, de respeito, de veneração, de produção do suficiente e do decente para nós e para toda a comunidade de vida que também precisa da biosfera. Se não refizermos a aliança natural para com a Terra e a natureza, poderemos ir ao encontro do pior. Possivelmente só iremos aprender e tomaremos decisões fundamentais quando grandes ameaças atingirem nosso destino e percebermos que não temos outra alternativa senão mudar: o modo de relacionamento para com todos os seres, as formas de produção e de consumo e os espaços de convivência pacífica e tolerante entre os mais diversos povos. Talvez dando espaço ao capital espiritual que não tem limites à diferença do capital material que é limitado, quer dizer, cultivando os valores da solidariedade, da convivência pacífica, do cuidado para com todas as coisas, da espiritualidade explícita como a meditação, a expressão artística e estética, o autoconhecimento e outras dimensões que formam o caráter exaurível e profundamente realizador do mundo espiritual, construiremos um outro caminho que nos leva a uma Terra da Boa Esperança (Ignacy Sachs) e a uma biocivilização.
O quão fundamental é a espiritualidade em tempos bicudos como o atual? Como manter a fé sem ilusões sobre a realidade humana?
Os tempos atuais são dramáticos. Isso não representa ainda uma tragédia anunciada. Mas significa seguramente uma grande crise de civilização. Dizem-nos os antropólogos que em tempos assim fervilham as religiões e se aprofundam os caminhos espirituais. Eles formam aquele campo da experiência humana onde se elaboram os grandes sonhos e utopias, conferindo sentido à vida e rasgando horizontes de esperança. Bem dizia Ernst Bloch: “onde há religião, há esperança”; “o verdadeiro gênese não está no começo, mas no fim”. Isso podemos verificar atualmente. A despeito do caráter fundamentalista de muitas expressões religiosas, há uma efervescência do religioso, do sagrado e do místico irrompendo em todas as partes e em todos os estratos sociais. Quer dizer, os seres humanos estão cansados de materialidade, de eficiência, de consumo e de racionalidade. O segredo da felicidade e a quietude do coração não se encontra nas ciências, nem na acumulação de poder, mas no cultivo da razão sensível e cordial, aquela dimensão do profundo humano onde medram os valores e vige o mundo das excelências. Daí nascem os sonhos e os valores que podem inspirar um novo ensaio civilizatório.
Nenhum comentário:
Postar um comentário