Acordo.
Escuto o sino das igrejas. A do Rosário a da Boa Morte têm as portas abertas e
os altares iluminados. O Rio Vermelho rola confuso suas águas engrossadas e
crespas. Vai uma chuva mansa e leve pela cidade tranquila. Os morros escuros
vestiram alvas de névoas. Passa gente na ponte conversando coisas simples e
retas, demandando as igrejas para a missa da meia-noite.
A criança vai chegar. A esperança e a certeza de sua vinda, vinte séculos
passados, ainda têm força de emocionar os corações. Mais ou menos mal, a
humanidade ainda se prepara para o advento. Os que viajam, os que chegam, os
que abraçam, os que presenteiam, os que surpreendem as crianças, os que se
lembram dos pobres, o fazem em vosso nome.
Natal! Pequena pausa no ódio, no rancor, na indiferença, no desconhecimento do
semelhante. Natal! Um minuto fulgurante para os corações que logo se fecham com
a chave do egoísmo. Mas o milagre desse minuto é vosso, Menino Jesus.
Nascestes do desconforto de um abrigo de animais. A cidade rumorosa sem sequer
percebeu vossa chegada. Mas vossa estrela foi vista e acompanhada pelos
humildes. Nascia com a estranha criança um mundo novo e nova esperança para
aqueles que nada esperavam.
Trinta anos mais tarde, aquele infante rasgaria um horizonte para os
derradeiros escravos e humilhados: “os últimos serão os primeiros”. Sublevação
da ordem natural demandando a cruz.
Sereis os primeiros, vós que nada tendes senão braços e músculos de trabalho
para os poderosos de todos os tempos e nervos doloridos para a crueldade dos
castigos. Dois mil anos decorridos vive ainda, nos corações, a promessa divina.
Vinde a mim vós todos que estais em aflição e eu vos aliviarei.
Menino Jesus, o povo eleito esperou pela vossa presença quatro mil anos. Os
profetas passavam e desapareciam afirmando a vossa vinda. As mulheres ansiavam
pela maternidade na esperança de que seus ventres saísse o prometido. E o
privilégio se realizou naquela noite remota que a igreja exalta e que a
humanidade comemora de forma incompleta como tudo que é humano.
Venceram-se os quatro domingos do Advento, simbolizando os quatro mil anos da
vossa espera pelos que esperavam. Chegastes pequena criança com o vosso destino
traçado de pobreza, incompreensão e perseguição pelo mesmo povo que vos
aguardou ansioso. Nem pudestes crescer os vossos e na sombra das figueiras de
Nazaré, na casa tranquila do carpinteiro. Fostes levado em fuga dos poderosos,
já receando a vossa pequenina sombra que mais tarde acolheria todos os
desgraçados e oprimidos.
Menino Jesus, há tempos fizestes renascer os sonhadores da redenção social,
todos os mártires da desigualdade humana, mas nem o menino de Belém alcançou a
unanimidade no tema. Nem a pregação dos evangelistas, nem o verbo de João
Batista, nem o sacrifício da cruz.
Senhor Menino, olhai bem vosso mundo e contemplai de perto os homens, feitos à
imagem e semelhança de vosso Pai.
Menino Jesus, nesta noite de Natal, tão distante dos meus, abençoai o lar de
meus filhos e sede guia e luz de meus netos. Acertai os passos de meus filhos e
levantai o destino de meus netos e de todos os netos de todos os avós. Levai
vossa presença aos desesperados, consolai os descrentes. Mostrai o vosso caminho
aos marginais de todas as cidades e detei os criminosos com vossa mão de
infante. Levai os homens do governo para o acerto e para a justiça. Afastai o
perigos das guerras e fazei com que os chefes de Estado possam ser
compreendidos uns dos outros. Desarmai os fortes em benefício dos fracos e
consolai, Senhor, os que vivem na solidão.
Fazei, menino Jesus, com que as comemorações do vosso dia entre as criaturas
não se façam apenas com estes pequenos símbolos de auxílio dos que podem para
aqueles que nada têm.
Fazei, pequena e poderosa criança, com que os pobres, se lembrem sempre de que
a parte deles será recebida na casa de vosso Pai. Fazei com que os poderosos da
sua terra não se esqueçam de que já estão recebendo sua parte.
Cora
Coralina
Do Livro
Villa Boa de Goyaz