quarta-feira, 13 de novembro de 2019

COMPOSIÇÃO



O amor põe suas mágicas
em funcionamento.
O amor compõe, propõe, supõe,
indispõe e interpõe,
sua adaga entre o ser
e o vazio do vício
(a ser-viço do amor).

O amor compõe seus ácidos
na linha mais ambígua
da mão, entre o desejo
e o tato, neste incêndio
propagante e terrível.

O amor dispõe seus plácidos
novelos enredados
e fio a fio supõe
sua mosca, seu tédio
e sua deslizante
atração de suicídio
e adultério.

O amor
propõe enigmas.Trans-
põe montanhas de sombras,
interpõe-se entre os seres
e apenas se indispõe
para compor de novo
sua casca e seu ovo.

 Gilberto Mendonça Teles
 no livro “Hora aberta – Poemas reunidos”



TUDO PODE TENTAR-ME



Tudo pode tentar-me a que me afaste deste ofício do verso: 
Outrora foi o rosto de uma mulher, ou pior - 
As aparentes exigências do meu país regido por tolos; 
Agora nada melhor vem à minha mão Do que este trabalho habitual. 
Quando jovem, Não daria um centavo por uma canção 
Que o poeta não cantasse de tal maneira 
Que parecesse ter uma espada nos seus aposentos; 
Mas hoje seria, cumprido fosse o meu desejo, 
Mais frio e mudo e surdo que um peixe.


William Butler Yeats
 em "W.B.Yeats uma antologia".
 Selecção e tradução de José Agostinho Baptista.
arte Marchella Piery


segunda-feira, 11 de novembro de 2019

CANÇÃO




Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito

E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece

E saiam todos os sóis
que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
– mas que saiam de joelhos

E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem

Alexandre o´neill
tempo de fantasmas 1951
poesias completas

ORAÇÃO CELTA




Que o caminho seja brando a teus pés,
o vento sopre leve em teus ombros.
Que o sol brilhe cálido sobre tua face,
as chuvas caiam serenas em teus campos.
E até que eu de novo te veja,
Deus te guarde na palma de sua mão.

ENTRE O LUAR E A FOLHAGEM


Entre o luar e a folhagem,
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.

Tênue lembrança ou saudade,
Princípio ou fim do que não foi,
Não tem lugar, não tem verdade,
Atrai e dói.
Segue-o meu ser em liberdade.

Vazio encanto ébrio de si,
Tristeza ou alegria o traz?
O que sou dele a quem sorri?
Não é nem faz,
Só de segui-lo me perdi.

Fernando Pessoa
In Cancioneiro
(19.08.1933)


GERMINAL




 Passou. A vida é assim: é o temporal que chega,
 Ruge, esbraveja e passa, ecoando, serra a serra,
No furioso raivar da indômita refrega
 Que as montanhas abala e os troncos desenterra.

 Mas o pranto, afinal, que essa cólera encerra
Tomba: é a chuva que cai e que a planície rega;
 E a cada gota, ali, cada gérmen se apega
Fecundando, a minar, toda a alagada terra.

Também o coração do convulsivo aperto
 Da dor e das paixões, das angústias supremas,
 Sente-se livre, após, a um grande choro aberto.

 Alma! já que não é mister que ansiosa gemas,
Alma! fecunda enfim nas lágrimas que verto,
 Possas  tu germinar e florescer em Poemas!

  Emilio de Menezes
de Poemas da Morte

sábado, 9 de novembro de 2019

SONHOS




mergulha nos sonhos
ou um lema pode ser teu alimento
(as árvores são as suas raízes
e o vento é o vento)

confia no teu coração
se os mares se incendeiam
(e vive pelo amor
embora as estrelas para trás andem)

honra o passado
mas acolhe o futuro
(e esgota no bailado
deste casamento a tua morte)

não te importes com o mundo
com quem faz a paz e a guerra
(pois deus gosta de raparigas
e do amanhã e da terra)


e.e. cummings
arte Kinuko Craft





"Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, abranda as rochas rígidas, torna água todo fogo telúrico profundo. E reduz, sem que, entanto a desintegre, à condição de uma planície alegre, a aspereza orográfica do mundo!"

(Augusto dos Anjos)


A INFÂNCIA REDIMIDA


A alegria, crio-a agora neste poema.
Embora seja trágica e íntima da morte
a vida é um reino - a vida é o nosso reino
não obstante o terror, o êxtase e o milagre.

Como te sonhei, Poesia!, não como te sonharam...
Escondo-me no bosque da linguagem, corro em salas
de espelhos.
Estou sempre ao alcance de tudo, cheio de orgulho
porque o Anjo me segue a qualquer parte.

Tenho um ritmo longo demais para louvar-te,
Poesia.
Maior, porém, era a beira da praia de minha cidade
onde, menino, inventei navios antes de tê-los visto.
Maior ainda era o mar
diante do qual todas as tardes eu recitava poemas
festejando-o com os olhos rasos d'água e às vezes
sorrindo de paixão.
porque grande é descobrir-se o mar, vê-lo
existir no mundo.
Ó mar de minha infância, maior que o mar de
Homero.

Brinco de esconder-me de Deus, compactuo com as
fadas
e com este ar de jogral mantenho querelas com a
morte.
Depois do outro lado, há sempre um novo outro
lado a conquistar-se...
Por isso te amo,Poesia a ti que vens chamar-me
para as califórnias da vida.
Não és senão um sonho de infância, um mar visto
em palavras .


Lêdo Ivo
In O Oceano Roubado
arte Lienkie Lombard

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

COLHE O DIA, PORQUE ÉS ELE




Colhe o Dia, porque És Ele
Uns, com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

Ricardo Reis
 de “Odes”


sábado, 2 de novembro de 2019

FASCINAÇÃO



Tudo ama!
As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,
tudo ama! tudo ama!

Há amor na alucinada
fascinação do abismo,
amor paradoxal, humano e forte,
que se traduz nas febres do sadismo,
nessa atração perpétua para o Nada,
nessa corrida doida para a Morte.

Por isso, quando as lianas
em lascívias florais cercam de abraços
o tronco hirsuto e grosso,
têm, no amplexo mortal, crueldades humanas.
Há no erótico ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,
a assassina violência de dois braços
crispados num pescoço
atenazando-o para estrangulá-lo!

É que o amor quer a morte. Num momento
resume a vida, os loucos entusiasmos
dos supremos espasmos…
Nesse furor que o invade,
tem a volúpia da ferocidade,
tem o delírio do aniquilamento!

É por isso que vês, por tudo
uma luta de morte, um desespero mudo:
a insídia da raiz que mina a terra e a esgota,
o caule que ergue o fuste, a rama, em sobressalto,
agitando pelo ar a própria dor ignota,
no torturante amor do mais puro e mais alto!

E, na noite estival,
enchendo o Espaço e o Tempo, a Luz e a Treva,
o turbilhão fantástico se eleva
do amor Universal.
Tudo ama!

As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,
tudo ama! Tudo ama!…

Juca Mulato freme. Imerge os olhos entre
as estrelas curiosas.

Não sabe que anda o amor nos espaços profundos
a fecundar o ventre
das próprias nebulosas
na eterna gestação de novos mundos…

Ele é a matriz da vida: multiplica
seres e coisas, numa força eterna,
cria o verme, animais que andam de rastros.
Mata e ressurge, estiola e frutifica,
e, pelo espaço rútilo, governa
a prodigiosa rotação dos astros!

E a vertigem do amor, fascinadora,
tudo arrasta, fantástica, nos braços
e a terra que palpita, canta e chora,
ora imersa na treva ora imersa na aurora,
leva através do Tempo e dos Espaços…

Acendendo no olhar um lampejo divino,
Juca Mulato cede à vertigem que o enlaça
e brada num transporte:
“Arrasta-me também, no turbilhão que passa!
Leva-me ao teu destino,
Amor que vens para a Vida e que vais para a Morte!”

Menotti Del Picchia, 
Melhores Poemas Menotti Del Picchia

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

DESESPERADA, MENTE



Mentira, você não me ama.
Eu também, eu nunca te amei.

Mas o que importa a verdade
quando esta sede quase mata a gente
e nada mais que uma ilusão ardente
pode saciar a vontade
de ter amor, mesmo fingido, mesmo molhado?

Verdade, eu nunca te amei,
Você também, você nunca me amou.

Então diz que me ama. Desesperada, mente.
Te faço confissões alucinadas
e tenho febre ao lado do telefone
esperando tuas mentiras descaradas.
Sente, pouco importa a falsidade
e mente, mente, meu amor, espatifada mente.

É tudo verdade, é tudo mentira.
Vamos voar num tapete voador
de olhos fechados, de mãos enlaçadas
como se houvesse amor, esquecer
que você não me ama
e eu também. eu nunca te amei,
meu amor, minha dor.

Desesperada, mente
mente, mente, meu amor
alucinada, mente.

Carlos Fernando Abreu
de Poemas nunca publicados
arte Dorina Costras