domingo, 27 de junho de 2010

ADÉLIA PRADO BUSCA A ESTÉTICA NO SAGRADO

Escritora mineira vê com tristeza pessoas "comendo umas às outras" pela vaga do morto na Academia de Letras




A escritora observa que textos canônicos nunca
 são escritos numa "linguagem comum"
Adélia Luzia Prado Freitas nasceu em Divinópolis (MG). Apresentada ao editor por Carlos Drummond de Andrade – que avaliou seus versos como "fenomenais" – teve seu primeiro livro, Bagagem, publicado em 1976. Em 1978 lançou O coração disparado, conquistando o Prêmio Jabuti, o principal prêmio literário do país.
Adélia Prado escreveu seis livros de poesia, entre eles Faca no Peito, em 1988, e Oráculos de maio, em 1999. Além disso, lançou seis obras em prosa, como Solte os cachorros, em 1979; e Cacos para um vitral, em 1989. Seu último livro é Filandras, lançado em 2001 pela editora Record.
A escritora mineira esteve em Uberaba a convite da livraria Alternativa Cultural, em parceria com a escola Criativa. De manhã fez uma passeata poética com os alunos da escola, para quem leu trechos de suas obras. À noite participou de um sarau no auditório da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, onde declamou alguns de seus poemas. Esta entrevista foi realizada na manhã de 11 de setembro, no café da Alternativa Cultural.

As leituras que fazia do evangelho na adolescência, que a senhora já chamou de "furor católico", eram vocação mística, ou na verdade um deslumbramento estético?
Adélia Prado: As duas coisas. No texto sagrado, no bíblico e no canônico – das celebrações etc – eu via uma beleza poética. Os textos da missa são textos poéticos, independente de ser religiosos. A função deles, vamos dizer, é uma revelação de uma verdade teológica, religiosa. Mas eles são poéticos, e só por isso eles guardam essas verdades: a verdade teológica nunca é vazada numa linguagem comum.
Então eu vi que o texto era muito poético, e aquilo me encantava duplamente: pela energia espiritual e pela beleza das palavras.

A senhora sempre se refere à poesia como uma experiência religiosa. Deus, para a poeta Adélia Prado, é uma realidade transcedental, ou é uma elaboração da cultura humana?
Adélia: Não, de jeito nenhum. Eu acho que Ele é também uma projeção humana. É um desejo infinito que nós temos de adoração, e de algo que nos suspende com o sentido absoluto. Nós somos finitos e relativos, e queremos sempre uma coisa absoluta: que esse café maravilhoso não acabe, que a minha paixão não acabe, que essa casa bonita permaneça. A gente tem sede de infinito e de permanência. Então, esse ser que assegura a permanência das coisas, é que eu chamo de Deus. É o absoluto.

Como poeta, registrar seus textos em livros, e garantir a posteridade de seus poemas, é também uma maneira de se sentir imortal?
Adélia: No sentido de que a poesia é melhor do que eu e é mais perene do que eu… mais perene não, ela é perene. Eu sou mortal, e ela não. Nesse sentido sim. Os "imortais" morrem mas a poesia fica. O que é imortal é a obra. Só por analogia é que se chama alguém de imortal, mas isso é uma bobagem.

Por falar nisso, o que acha da Academia Brasileira de Letras? Qual é o seu sentido nos dias de hoje?
Adélia: Eu não sei, porque a Academia acolhe pessoas que não são do meio literário. E ela é uma academia de letras! Quando eu vejo as pessoas se comendo umas às outras para ocupar a vaga do morto, eu acho aquilo uma tristeza, um sarcófago.

Pelo jeito, você não tem vontade de ser mais uma "imortal".
Adélia: Não dá o menor desejo de Academia não.

A senhora começou – de verdade! – a escrever poesia depois da morte de sua mãe, e passou a escrever "torrencialmente" depois da morte do pai. Há beleza na dor?
Adélia: Há sim, há sim. Todo ser é belo, já falava São Thomás de Aquino. Aquilo que é, é belo. A dor é bela sim. Para você ver, é tão bela que aqui em Minas Gerais se cultua mais a paixão de Cristo do que a ressurreição (risos). Em Minas somos todos quaresmais né, naquelas procissões de Ouro preto, e em Minas inteira. É a Paixão, a Semana Santa, Sexta-feira Santa, Procissão do Enterro. E a hora que chega na ressurreição a gente quase esquece. Há uma espécie de estética da dor. É quase como estetizar as favelas, a miséria. Você faz fotografias maravilhosas da pobreza, né? Então a dor é bonita sim.

Mas isso me parece um grande problema moral. Se conseguimos enxergar beleza na pobreza, começaríamos então a tolerá-la, ou mesmo desejar que a miséria se perpetue para saciar nossa sensibilidade estética?
Adélia: Há beleza e beleza. Por exemplo, quando Goya pinta aquele quadro O assassinato, é horrível: estão lá o condenado e os três soldados com os fuzis. Aquilo é horrível… mas é belo. Não significa que eu vou querer a pena de morte só para gozar aquela beleza. Não é isso. Mas não posso ser impedida também de ver beleza na forma como ele retrata o fuzilamento. É quase horrível falar, mas é verdade. Picasso pintando Guernica, figuras de monstros… na arte você admira a beleza.
É aquela história, detesto o pecado e amo o pecador. É por aí (risos).

Faço essa pergunta para todo escritor: a literatura diz mais sobre a realidade do que o jornalismo?
Adélia: Evidente! O jornalismo é factual, né? Fulano matou ciclano. O ladrão roubou não sei o quê na favela. Agora a arte, por vias e por um estatuto muito próprio dela, falando a mesma coisa, revela o que está por trás disso. Revela, desvela uma outra coisa que o simples fato jornalístico não chega lá. Daí que se você lê, por exemplo, a literatura de qualquer país, você conhece muito mais daquele povo do que se você for ler os relatos jornalísticos. Isso não tem dúvida. Apesar de que você é estudante de jornalismo… mas a gente precisa de jornalistas também. (risos)
Bondade sua…
Adélia: Precisa, é claro. É uma das formas, uma das. Agora, se for falar em forma mais completa, eu digo que é a literatura
.
O cotidiano de cidades pequenas normalmente é tido como monótono. Às vezes têm-se a impressão que só nas cidades grandes "as coisas acontecem". Mas sabemos que você adora morar em Divinópolis, sua cidade natal. É função da poesia reencantar o dia-a-dia para torná-lo mais interessante?
Adélia: Não, a literatura não tem essa função. Decorre dela esse encantamento. Eu não escrevo um livro para que as pessoas vejam como as coisas encantadoras. Não é isso não. É claro que quando você faz um poema bom, a pessoa fala: mas que coisa, como isso é bonito eu não percebia!
A literatura e a poesia é só expressiva, é igual flor no pé, cachoeira caindo, é um fenômeno natural. Então eu não posso manipular, nem dar uma intenção nisso não. A poesia escapa a essas manipulações.

Mas, enquanto seres culturais, nós não enxergamos melhor as coisas quando conseguimos nomeá-las?
Adélia: Claro. Nós somos animais simbólicos. Uma galinha come um milho e ela não precisa saber que milho é milho (risos), nem dar nome ao milho. Mas eu preciso saber: estou comendo arroz com feijão. Por causa da minha natureza simbólica eu preciso de significados. E nomear é justamente dar significado às coisas. Já está na Bíblia isso, né? Deus entregou a criação a Adão e falou: nomeie as coisas, dê nome. Eu criei para você agora dar nome. Isso é função humana.

Escritor se sente meio Deus quando cria um mundo imaginário?
Adélia: Nossa senhora!, ele se sente, às vezes, a última das criaturas. Porque ele é muito pior que o livro dele. É verdade. O dia que eu for igual a um livro meu, eu estou perdida, não dou conta de escrever mais nenhuma palavra. Eu sempre tenho que ser melhor do que eu mesma para ir atrás do livro. Deus nada, quê que é isso! (risos). Tadinho de nós.

Entrevista de André Azevedo da Fonseca

Nenhum comentário:

Postar um comentário