sexta-feira, 22 de outubro de 2010

AULA DE POESIA

Não, antes de técnica, é necessário olhar. Antes de métrica, é necessário paciência. Para reduzir a poesia em argumentos do poeta, isso tudo é necessário para a estética das escolas literárias, mas a poesia é feita muito mais do que de letras, é feita de coisas primárias, basta você ascender a miragem para uma imagem, transformar a matéria engraçada em coisa séria, fazer com que a pedra vire flor, e não ao contrário, para que não se dê ao mundo outras possibilidades de arremesso.

Iniciemos com as cores vivas. E multipliquemos as luzes do dia em todos os cantos. Façamo-nos impressionistas, captando a mesma imagem com diferentes olhos. Devemos abdicar da vaidade para escrever o verso perfeito, pois este nunca sairá, ao menos a quem escreve. Porque depois de lapidado o verso, ele deixa de ser o que era, e passa ser não o que a imaginação queria, mas o que a convenção de cada época oprime: em décadas passadas a rima, na contemporaneidade, o espanto.

Que passamos a olhar o simples antes de escrever difícil; não transformar tanto o objetivo em subjetivo, senão a poesia torna-se só de um dentro do entendimento, e poesia de um não é poesia; se o que faz o poeta é compartilhar sensações então porque escrever para si mesmo?

Então escrevemos: amor de sexta-feira; saudade das amendoeiras do jardim de infância; voo de pandorga ou pipa e depois sair correndo antes da chuva; observação da lua em quatro fases distintas e se enganar sempre qual é a cheia e qual a nova; pele tostando ao sol com suor correndo em câmera lenta como nas propagandas de refrigerante; boca seca de nervosismo antes de apresentar nosso projeto, ou melhor ainda, antes de ler uma carta; pedido de perdão às 23 horas em dias 31 de dezembro; passeio pela mesma rua reparando coisas imperceptíveis; passeio por uma nova rua com olhos de última vez, nunca de primeira; atravessar correndo entre os carros para encontrar com alguém na outra avenida que de costas não lhe vê; cantarolar uma música que lhe permita permanecer em silêncio; dormir em dois numa cama estreita para sentir o necessário peso de cada braço; medir o abraço, se assim for possível, no momento depois da espera, aquele do primeiro encontro e ficar com essa imagem para sempre; separar os melhores temperos, em algumas vezes em detrimento dos seus preferidos, para fazer sua receita; não colocar pontos finais, mas preferir vírgulas...as vírgulas lhe dão outra possibilidade, além da respiração.

Nas minhas andanças a contar e ouvir histórias pelas escolas e lugares a que sou chamado, tenho recebido muitas aulas de poesia, e encontrado poetas bem melhores que eu. Poderia citar alguns, desconhecidos, mas tão necessários pro mundo, que é uma pena não serem globalizados. Seja na perseverança da dona Maria de Lurdes, com sua biblioteca comunitária; seja na luminosidade de meu amigo Osias e no que ele tem de crença no que há de bom no humano; seja na técnica ferrenha de Rubens da Cunha; seja na generosidade de Edson de Araújo; também nos ouvidos atentos do búlgaro Peter, do Ancionato Bethesda; além da amizade sincera de Rivelino Stuckel; da eternidade que Jurandir Albano me oferece; da dedicação que meu amigo Gilberto Ferreira me presenteia; e dos poemas, grandes de amor, de Patricia Hoffmann.

Recebo alguns e-mails de leitores me perguntando por que costumo citar tanta gente. Eu lhes respondo amigos leitores; é que, pra mim, a gratidão é a primeira matéria de minha aula de poesia.

M.de Silva e Silva
Crônica retirada do Jornal A Notícia de 22.10.2010

tela de Candido Portinari

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