sexta-feira, 20 de março de 2020


Há dias em que a imensidão se apresenta tão branca,
que até o colibri fica inexpressivo.
Outras vezes, ela reverbera em sol tão absoluto,
que chego a temer sua real intenção.

Flora Figueiredo
de Páginas viradas de um abril qualquer

sábado, 7 de março de 2020

O AMOR, MEU AMOR

                                                     

                                                                (Para a Patrícia)

Nosso amor é impuro 
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo. 

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer. 

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu. 

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida. 

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida. 

Pudesse eu ser tu
e em tua saudade ser a minha própria espera. 

Mas eu deito-me em teu leito
quando apenas queria dormir em ti. 

E sonho-te
quando ansiava ser um sonho teu. 

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar. 


Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar. 

Mia Couto 
de Poemas Escolhidos 
arte Van Gogh